quem fundou são carlos?
Versões conflitantes da história da fundação da cidade expõem jogo de poder

 ano 5  -  n.10  -   jul./dez. 2007 

por Larissa Perdigão

Larissa Perdigão
Catedral de São Carlos: terreno de Jesuíno ou dos Botelhos?

Esta é, provavelmente, a questão mais controversa da história de São Carlos: quem foi o fundador da cidade? Não há regras que levem a uma resposta única e definitiva, logo, ela depende de interpretações subjetivas, muitas vezes corrompidas pela emoção. Até as vésperas do centenário da cidade, comemorado em 1957, nunca se havia discutido o assunto com seriedade.

Nos almanaques do século 19, a informação era a de que a povoação fora fundada em 1857, por iniciativa da família Botelho, auxiliada por Jesuíno José Soares de Arruda. Já o primeiro tratado histórico sobre São Carlos, composto em 1893 por Cincinato Braga, economista e político de renome nacional, sustenta a versão de que Carlos José Botelho, concessionário da Sesmaria do Pinhal, alimentava a idéia de fundar uma cidade em suas terras, mas, falecendo em 25 de novembro de 1854, deixara a tarefa para seus herdeiros, que tiveram a ajuda de Jesuíno.

Theodorico de Camargo, advogado, ao fazer a revisão do trabalho de Cincinato Braga, mais de 20 anos depois, manteve a história sem investigar sua veracidade. Entretanto, na década de 1930, ele acabou se aproximando de José Soares de Arruda, neto de Jesuíno. A partir do fim da década seguinte, Theodorico e José Soares passaram a defender ardorosamente, através de artigos publicados em jornais locais e de São Paulo, outro ponto de vista.

Segundo eles, Jesuíno de Arruda, negociante residente em Piracicaba, era amigo de Carlos José Botelho. Talvez por conhecer seu sonho de fundar aqui uma cidade, exatos oito meses depois da morte de seu amigo, Jesuíno comprou duas glebas de seus herdeiros, ambas localizadas a sul do atual centro de São Carlos, passando a morar nessas terras, denominadas "Sítio do Melo".

Dois dias depois, em 27 de julho de 1855, Jesuíno teria comprado outro terreno, desta vez às margens do córrego do Gregório, que cruza o atual centro da cidade, de um genro de Carlos José Botelho. Em documento dirigido ao pároco de Araraquara para o registro das terras compradas, datado de dezembro de 1855, Jesuíno declarou ter um sítio "no lugar denominado Mello e Gregorio".

Alguns meses depois desta declaração, Jesuíno teria efetuado doação de parte de suas terras no Gregório à Câmara Municipal de Araraquara, para que lotes fossem distribuídos gratuitamente àqueles que quisessem fixar-se em São Carlos. Este documento nunca foi encontrado, mas registros de transmissões gratuitas de terreno efetuadas por "estar dentro do prazo para isso permitido" em doação feita ao patrimônio de São Carlos do Pinhal indicam sua provável existência.

Já em 23 de outubro de 1856, Jesuíno e sua esposa dirigiram ao bispo de São Paulo pedido para construir uma capela, dedicada a São Carlos, no local da atual catedral, tendo para isso feito a respectiva doação da área onde ela seria construída, dizendo que moravam muito longe da matriz da paróquia, em Araraquara.

No início de 1857, a Câmara Municipal de Araraquara, presidida por Antonio Carlos de Arruda Botelho, filho de Carlos José Botelho e futuro Conde do Pinhal, solicitou ao presidente da província de São Paulo a elevação do status político do povoado de São Carlos do Pinhal a distrito de paz de Araraquara, visto já haver "bastantes habitantes". Em julho, a solicitação foi atendida.

Por último, um documento de 8 de outubro de 1858, assinado por Jesuíno de Arruda e sua esposa, estabelece uma retificação do termo de doação de terras ao distrito de São Carlos do Pinhal. A partir daquela data, não mais haveria distribuição gratuita de terrenos, mas venda.

Diante dessa nova versão dos fatos, Maria Cecília Botelho Ferraz, historiadora, descendente direta de Carlos José Botelho, respondeu a Theodorico, através de artigos e de dois livros, publicados em meados da década de 1950. Ela sugere que Jesuíno só teria vindo morar em seu sítio em 1862, ao contrário do que ele afirmou em sua solicitação para a construção da capela.

A própria solicitação seria fictícia. Jesuíno teria servido de intermediário dos Botelhos, visto que, segundo a carta da Sesmaria do Pinhal, era proibida a cessão de terras para fins religiosos. Como Jesuíno tinha terras nas cercanias da área urbana, poderia passar como dono da mesma, e a Igreja sequer iria perceber. A retificação da doação de terras, de outubro de 1858, seria a comprovação de que a primeira, de dois anos antes, tinha valor nulo.

Por fim, a compra de Jesuíno de terras no Gregório só teria sido feita em 27 de julho de 1857, depois, portanto, do início da ocupação da área. Theodorico, ao ter em mãos a escritura original, teria rasurado a data do escrito, trocando o 7 pelo 5. A oficial do cartório, na dúvida, enviou o documento à Polícia Técnica, que apurou que o número original é 1855, mas que houve tentativa de adulteração.

Maria Cecília, acusada de ser a autora da rasura, percebeu haver no contrato referência a uma troca de terras anterior. O registro desta permuta seria de novembro de 1856, portanto posterior à data certificada pela polícia, e provaria, assim, que a falsificação fora feita por Theodorico. Este levantou, então, a hipótese de a troca ter acontecido antes, verbalmente, tendo sido documentada apenas depois.

Um parecer do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, estranhamente semelhante a diversos artigos escritos por Maria Cecília, acabou sendo reconhecido pela Câmara Municipal de São Carlos, sendo o centenário comemorado com glórias à família Botelho. Até hoje, os visitantes do museu de São Carlos recebem a informação de que o Conde do Pinhal é o fundador da cidade.

Apesar da contenda, as dúvidas persistem. O registro de dezembro de 1855 incluía, de fato, as terras do Gregório? Jesuíno compraria terras já ocupadas, visto que, em 1857, o distrito já contava numerosas famílias e alguns negócios? A data de compra da área foi alterada? A primeira doação de terras foi mesmo simulada? Sem a solução dessas questões, torna-se impossível atribuir a alguém, com segurança e imparidade, as honras da fundação de São Carlos.


Cultura Secular

Revista de divulgação científica e cultural do Secular Educacional.

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