haiti: ontem e hoje
Uma breve história da pobre república negra

 ano 12  -  n.24  -   jul./dez. 2014 

por Larissa Perdigão

Larissa Perdigão
Cédula de 20 gourdes (ou goud) haitianos, com a figura de Toussaint Louverture

“O Haiti é aqui... O Haiti não é aqui...” A canção composta e gravada por Caetano Veloso e Gilberto Gil trata de uma diversidade de situações lamentavelmente cotidianas no Brasil e, periodicamente, forçando a reflexão do ouvinte, faz a afirmação e a negação que iniciam este texto. Mas, afinal, o que é o Haiti, esse país caribenho com que tantas vezes nos cruzamos nos noticiários? Certamente, conhecer um pouco mais do Haiti nos ajudará a entender se o Haiti é ou não aqui.

O Haiti ocupa a parte ocidental da ilha de Hispaniola, no mar do Caribe. Há registros de habitação dessa ilha desde 4000 a.C., mas a civilização que mais marca a história pré-colombiana de Hispaniola é a Taína. Considerada a terceira a chegar, em data não precisamente definida entre 500 e 1000 d.C., logo tomou a ilha inteira, mantendo-se, no entanto, dividida em diversas tribos. O destaque em seus conhecimentos, sem dúvida, eram na agricultura.

Foi em Môle-Saint-Nicolas, ou Mòlsennikola, hoje uma pequena cidade no extremo noroeste do Haiti, que Cristóvão Colombo primeiro pisou em Hispaniola, em dezembro de 1492. Praticamente nenhum taíno sobreviveu ao domínio dos europeus na ilha, tendo essa civilização quase desaparecido apenas 30 anos depois da chegada de Colombo.

A exploração implacável e a descoberta de riquezas mais valiosas e em maior quantidade no continente promoveram a estagnação de Hispaniola a partir da segunda metade do século 16. Com isso, a ilha passou a ser visada por piratas e por outros reinos, além do espanhol. Franceses foram se estabelecendo na parte ocidental da ilha até estabelecer ali uma colônia: Saint-Domingue. Em 1697, as fronteiras foram estabelecidas entre essa colônia e a homóloga espanhola Santo Domingo, no leste de Hispaniola.

A demanda por mão-de-obra, no entanto, começou bem antes disso. A chegada dos franceses e a retomada da economia da ilha, com o sistema de plantation, conduziram ao tráfico negreiro. Em pouco tempo, a colônia de Saint-Domingue tinha uma maioria populacional de escravos negros. Mas a exploração brutal dos negros logo levou às primeiras tentativas de rebelião. Escravos fugidos, liderados por François Mackandal, promoviam novas libertações e mortes de brancos por envenenamento, a partir de substâncias extraídas de ervas da ilha. Em 1758, porém, Mackandal foi capturado e queimado vivo em praça pública de Cap-Français, hoje Cap-Haïtien ou Kapayisyen, importante cidade do norte do Haiti.

As fugas de escravos para áreas montanhosas do país, constituindo quilombos, seguiram intensas, mas foi no fim da década de 1780 que os ecos da Revolução Francesa começaram a ser ouvidos em Saint-Domingue e a liberdade passou a ser, realmente, possível. É importante notar que havia não somente uma população escrava enorme, mas também uma população crescente de mulatos e de negros livres, a qual era impedida de ter participação na vida social e política da colônia.

Após a Revolução Francesa, os três grupos da colônia acabaram explicitamente se posicionando em lados distintos. Os monarquistas lutaram para manter seu status, enquanto os mulatos embarcaram à metrópole para exigir as prometidas liberdade, igualdade e fraternidade. Mas a maioria da população era negra cativa. E foi essa a população que liderou as primeiras rebeliões efetivas em Saint-Domingue. De acordo com algumas fontes, Dutty Boukman conduziu, em 1791, uma cerimônia religiosa vodu que acabou levando a uma rebelião no norte da colônia (região de Kapayisyen) que teria levado à destruição de quase duas mil plantações de cana-de-açúcar e à morte de cerca de mil donos de escravos.

Mais ao sul, o grande nome da revolução foi o de Toussaint Louverture. Como negro livre, ele conseguiu liderar uma expressiva massa de negros para a revolução. Teve, para isso, o apoio da colônia espanhola vizinha. Mudou de aliados ao longo da revolução: uma vez que passou a ter o apoio da metrópole para a abolição da escravidão, dispensou os aliados espanhóis e lutou com os franceses para expulsar os ingleses que tentaram se aproveitar da convulsão social para tomar o poder em Saint-Domingue.

A trajetória de Toussaint Louverture entre 1791 e a sua morte em 1803 não foi fácil. Os espanhóis que lhe deram suporte sentiram-se traídos e passaram a agir contra ele. Sua posição de abertura ao retorno dos brancos que fugiram da colônia sofria pesada oposição. Pressões para o retorno da escravidão também passaram a chegar da França. Mas problema maior Louverture teve com a subida de Napoleão Bonaparte ao poder. O general francês buscava impor nova constituição às colônias. Percebendo o crescente poder de Louverture, Napoleão enviou mais de 10 mil militares a Saint-Domingue, que conseguiram prender o revolucionário e levá-lo à prisão na França, onde morreu.

Mas a revolução haitiana acabou acontecendo. Em 1804, Jean-Jacques Dessalines, negro aliado de Louverture durante toda a década de 1790, finalmente tomou o poder e declarou a independência do Haiti. A bandeira adotada preservou o azul e o vermelho originais do pavilhão francês, mas eliminou o branco, em gesto de intenso simbolismo. O nome escolhido para o novo país também foi apropriado: Haiti era a palavra usada pelos taínos para se referir à ilha em que viviam.

Os anos seguintes mostraram o que o Haiti se tornaria ao longo de toda a sua história. Dessalines se autoproclamou imperador, aniquilando os brancos restantes e rejeitando os mulatos; o país se dividiu em dois em 1807; o suicídio do rei do norte em 1820 reunificou o Haiti como república; em 1825, a França reconheceu a independência do Haiti em troca da reparação financeira das perdas ocorridas durante a revolução, num total estimado em 10 vezes o PIB anual do Haiti, em dinheiro tomado emprestado a juros em bancos franceses.

O Haiti passou por inúmeras convulsões políticas ao longo da história. Quanto à economia, além de tê-la fortemente deprimida por ter de pagar os tais empréstimos aos franceses, em meados do século 19, a tentativa fracassada do Haiti em conquistar o país vizinho, a recém-independente República Dominicana, levou o governo haitiano à bancarrota. Colaboraram para o colapso do país a baixíssima produção, já que o sistema de plantation havia sido abandonado em prol de uma agricultura de subsistência; o isolamento político, já que países como os Estados Unidos só reconheceram a independência do Haiti na década de 1860; e a endêmica corrupção.

Por sinal, os Estados Unidos ocuparam o Haiti por vinte anos, entre 1914 e 1934, sem, contudo, melhorar o país. Migrantes seguiram abandonando o país em massa. Em 1937, para firmar-se no poder, o ditador da República Dominicana, Rafael Trujillo, ordenou o massacre dos haitianos que estivessem do lado dominicano da fronteira: estima-se que 20 mil tenham sido mortos. Trujillo fez uso do sentimento anti-haitiano entre os dominicanos, extremamente intenso até hoje, para se legitimar no poder.

Ditadura violenta, no entanto, não foi exclusividade do vizinho do leste. O Haiti elegeu, em 1957, o médico François Duvalier à presidência. Nada demorou para que Duvalier, conhecido como Papa Doc, montasse uma organização paramilitar para mantê-lo vitaliciamente no poder. Foi o que ocorreu. Em 1971, com sua morte, assumiu a presidência seu filho Jean-Claude, o Baby Doc, ainda sustentado pela milícia denominada Tontons Macoutes (em tradução literal, “titios do saco”, em sinistra referência à lenda infantil do homem que rapta crianças malcomportadas).

Larissa Perdigão
Polícia de Anses-à-Pitres, sudeste do Haiti: hoje, as patrulhas são feitas por estrangeiros

Os Tontons Macoutes aterrorizaram o Haiti mesmo após a queda de Baby Doc, em 1986, devida a protestos populares. Nas décadas de 1990 e 2000, ocorreram mais golpes de Estado, dificultando os governos eleitos de Jean-Bertrand Aristide (1991, 1994-1996 e 2001-2004) e René Preval (1996-2001 e 2006-2011). Foi exatamente em 2004, em mais um golpe de Estado, que as Nações Unidas organizaram sua Missão de Estabilização, a Minustah, presente no país até hoje.

Se não bastasse, Port-au-Prince (ou Pòtoprens, atual capital do Haiti) sofreu, em janeiro de 2010, um terremoto que matou dezenas de milhares de pessoas e sacrificou a já precária infraestrutura da cidade. Hoje, ainda há milhares de pessoas vivendo em barracas nas praças de Pòtoprens, por falta de moradia. Crianças que ficaram órfãs no terremoto também se contam aos milhares.

O país segue convulsionado. Na política, atualmente, observa-se uma resistência do presidente Michel Martelly em realizar eleições. As que elegeriam prefeitos, vereadores e um terço do Senado deveriam ter ocorrido em fins de 2012. Em janeiro de 2015, expiram os mandatos de todos os deputados e de mais um terço do Senado. Com o fechamento paulatino do Legislativo, teme-se o retorno da ditadura. Protestos vêm fazendo, mais uma vez, parte do cotidiano do país.

Enquanto isso, o Haiti segue como o país mais pobre do hemisfério ocidental. A economia é extremamente dependente dos envios de dinheiro pelos expatriados e das ajudas internacionais. A indústria se limita à exploração da mão-de-obra barata na manufatura de bens de exportação, como roupas e artigos esportivos. Mais de duzentos anos depois da independência da primeira república negra do mundo, a liberdade haitiana segue sendo apenas um sonho.

Larissa Perdigão
Escola em Anses-à-Pitres, sudeste do Haiti: acolhimento dos órfãos do terremoto


Cultura Secular

Revista de divulgação científica e cultural do grupo de pesquisa “Investigações Transdisciplinares em Educação para a Ciência, Saúde e Ambiente”.

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ISSN 2446-4759