olhares sobre a descolonização da áfrica
Um processo de múltiplas facetas, mas com ranço colonialista comum e persistente

 ano 16  -  n.32  -   jul./dez. 2018 

por Larissa Perdigão

sxc.hu
Bandeiras de Estados africanos: legados da colonização persistem

A descolonização da África foi um dos eventos mais significativos na história pós-guerra. Foi um farol para uma geração de idealistas que acreditavam na igualdade racial e na liberdade individual. A libertação da África do domínio europeu parecia inevitável depois da independência conquistada pela Índia e por outras colônias na Ásia. A luta africana também ajudou a abrir o caminho para o movimento dos direitos civis na América do Norte. Na década de 1950, líderes africanos, como Kwame Nkrumah, em Gana, e Nelson Mandela, na África do Sul, passaram a ombrear líderes como o indiano Jawaharlal Nehru ou o estadunidense Martin Luther King.

No entanto, o curso da descolonização nem sempre foi suave. Nkrumah passou um período na prisão por questionar o direito britânico de governar a África antes de se tornar o primeiro-ministro de Gana. Mandela ficou preso por quase 30 anos por desafiar o monopólio do poder branco na África do Sul.

A descolonização foi o reverso da colonização, ou seja, da dominação europeia da África ocorrida ao longo do século XIX. O grande marco da colonização foi a divisão do continente por potências europeias na Conferência de Berlim, 1884-85. No desenho das fronteiras, não se levou em consideração as tribos e as nações que habitavam o continente. Um prelúdio de Versalhes, 1919. De fato, os sete Estados colonialistas europeus (Reino Unido, França, Itália, Bélgica, Alemanha, Portugal e Espanha) enviaram pequenos exércitos para a África a fim de transformar as fronteiras desenhadas em seus mapas em fronteiras efetivas no solo.

Ainda que essa partição da África não tenha criado um conjunto de colônias uniformes, algumas características eram comuns. Por exemplo, as colônias na África eram essencialmente territórios conquistados e governados por estrangeiros. Um tipo de domínio comum era o “protetorado”, no qual um governo africano local permanecia aparentemente ativo, embora submisso a uma potência imperial europeia. Às vezes, mesmo líderes locais poderosos viam seus territórios incorporados aos protetorados, não significativamente diferentes de colônias governadas por administradores europeus.

Alguma descolonização ocorreu quase antes do fim das conquistas coloniais. Já no século XIX, colonos negros na Libéria e colonos brancos no Cabo eram considerados pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido como capazes de administrar seus próprios assuntos internos sem custo para o poder colonizador. Avanços progressivos foram vistos após a Primeira Guerra Mundial no Egito e, já na década de 1940, na Etiópia, embora a influência britânica permanecesse forte. Pouco depois, o império italiano na África foi gradualmente descolonizado, embora sem qualquer reconhecimento explícito de que isso estava criando um precedente para o Reino Unido, a França, a Bélgica e Portugal.

O pós-Segunda Guerra Mundial, com sua retórica de liberdade e autodeterminação na Europa e seu legado de descolonização na Ásia, tornou inevitável o debate sobre a independência da África. Ainda que as Nações Unidas tenham sido ineficazes na proteção dos direitos humanos e das liberdades dos povos da Ásia, sua ação sinalizou que os colonizadores tinham responsabilidades pelo bem-estar de seus súditos. A opção pela descolonização tornou-se atraente quando tais responsabilidades pareceram não mais serem compensadas pelos benefícios econômicos e estratégicos da propriedade colonial.

O Reino Unido foi o primeiro dos imperialistas a reconhecer que poderia se beneficiar ao conceder autogoverno às suas colônias, pois evitaria conflitos nacionalistas ou independentistas e manteria os benefícios econômicos e estratégicos, porém, sem o custo político e financeiro do controle colonial direto. Em seu caso, somente o Quênia foi exceção, exigindo alguma ação militar. Já França, Bélgica e Portugal seguiram outros caminhos. Cada um desses países envolveu-se em sérios confrontos armados com seus súditos coloniais antes de reconhecer que o antigo nexo colonial não era viável, nem de fato necessário aos interesses metropolitanos.

Na década de 1950, assumiu-se ingenuamente que o nacionalismo africano era uma força ideológica e política homogênea pronta para assumir os governos dos novos Estados. Nada mais falso. Em cada uma das colônias, políticos de todo o espectro de convicções eram obrigados a aderir ao movimento nacionalista para alcançar credibilidade. Somente os locais pareciam conhecer a fervilhante complexidade das sociedades coloniais, divididas por classe, etnia e crença. Os novos políticos se viram diante do difícil desafio de buscar criar instituições de tomada de decisão que atendesse a essa complexidade. Os governadores coloniais que partiam acreditavam que o sistema multipartidário europeu ocidental também seria apropriado para a África. Na prática, a primeira geração de governos africanos mais se assemelhou às ditaduras militares e regimes de partido único do leste da Europa. Fato é que o colonialismo pouco proporcionou experiência de diálogo criativo entre os oponentes políticos locais; ao contrário, usara uma tradição autoritária para alocar recursos escassos, com pouca consideração pela equidade. Nesse contexto, a democracia não haveria de ser um dos legados imperialistas na África.

Em contraste, um legado do colonialismo que sobreviveu foi a divisão geográfica da África. A África colonial em 1946 tinha basicamente a mesma forma que a África independente hoje. Com pouquíssimas exceções, as fronteiras que haviam sido traçadas tão arbitrariamente foram retidas duas gerações depois pelos políticos nacionalistas da África. De fato, pode-se argumentar que a característica central do nacionalismo em qualquer país africano era o desejo comum de se opor aos governantes coloniais dentro de suas fronteiras coloniais. Com raras exceções, esse desejo não foi substituído por quaisquer formas de busca pela superação dessas fronteiras. Na Somália, por exemplo, vemos as fronteiras coloniais prevalecendo de facto sobre a união de jure, faltando à Somalilândia apenas o reconhecimento internacional. A fronteira Etiópia-Eritreia foi restabelecida. A união de Camarões britânica a Camarões francesa somente restaurou a antiga unidade colonial alemã. Apenas duas diferenças a registrar: o Marrocos uniu-se ao Saara Ocidental, embora em ocupação não reconhecida, e o Sudão observou sua divisão recente em fronteira antes inexistente.

Os novos governantes não apenas preservaram as fronteiras já desenhadas, como também frequentemente atrelaram seus destinos pós-coloniais aos antigos colonizadores. A Commonwealth, mas mais especialmente a Francofonia, são exemplos de formas de controle de Reino Unido e França sobre suas ex-colônias ou mesmo ex-colônias de outros países, como Guiné Equatorial, República Democrática do Congo, Burundi e Moçambique. A influência dos países imperialistas permaneceu significativa mesmo quando as ex-colônias se submeteram a tiranos, como na República Centro-Africana ou em Uganda. De fato, Reino Unido e França deram ajuda militar aberta e encoberta aos seus herdeiros políticos escolhidos quando os contratos sociais pareciam estar quebrados e as rebeliões reais ou potenciais ameaçavam seus interesses. Em contraste, Portugal só legou a língua portuguesa, já que as relações exteriores foram marcadas pela ação das superpotências, especialmente notada na Guerra Civil Angolana.

Idiomas, por sinal, foram legados também preservados na administração da maioria dos estados sucessores da África. A educação também segue predominantemente os moldes europeus, até porque a elite africana ainda cursa universidades europeias. Influência cultural ainda mais difundida do que a língua e a educação é a religião colonial. Mesmo que os administradores brancos tenham se retirado, muitos missionários brancos permaneceram e foram apoiados por um número crescente de cristãos negros.

Os legados financeiros do colonialismo também persistem. Para a maioria dos novos países, a base monetária é feita por notas impressas na Europa, com cotação controlada por banqueiros externos e ligada às exportações de commodities. Mesmo assim, um avanço em relação ao colonialismo, onde os termos de troca oferecidos a fazendeiros individuais eram não somente desvantajosos, mas únicos, sem alternativa. O crédito aos novos países africanos também tinha custo excepcionalmente alto, com draconianas punições em caso de inadimplência. Pagou-se caro também por serviços de transporte, seguros e comunicações. Quando as nações do Oriente Médio romperam os laços coloniais, passando a determinar de forma autônoma o preço de seu petróleo exportado, a África foi vitimada novamente, como um consumidor que não podia pagar cinco vezes mais por seu petróleo, sujeitando-se a intervenções do Fundo Monetário Internacional para supervisionar sua contabilidade e ditar suas políticas fiscais.

A última fase da política colonial preocupou-se em grande parte com a redação de constituições sofisticadas para a substituição dos regimes coloniais por democráticos. A democracia, no entanto, não criou raízes instantaneamente, e o legado político imediato do colonialismo foi muitas vezes severamente autoritário e até mesmo arbitrário. A África sonhada por visionários como Kwame Nkrumah e Nelson Mandela no contexto da descolonização ainda está ausente do horizonte.


Cultura Secular

Revista de divulgação científica e cultural do grupo de pesquisa “Investigações Transdisciplinares em Educação para a Ciência, Saúde e Ambiente”.

Comissão editorial
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ISSN 2446-4759