transmutação: mito e verdade
Transformar um elemento em outro é realidade, mas não como a mitologia esperava

 ano 17  -  n.34  -   jul./dez. 2019 

por Deivisson Montalvão de Araujo

Adam Page/shc.hu
Memorial da Paz de Hiroshima: a transmutação usada na guerra

Imagine ter o poder de transformar tudo o que quisesse em ouro. Isso seria algo extraordinário, semelhante ao toque de ouro do rei Midas, retratado na mitologia grega. O toque de ouro pode ser apenas fantasia, mas gente de verdade tentou dominar esse poder. Os alquimistas, por exemplo, acreditavam que seriam capazes de transformar qualquer metal em outro metal, inclusive ouro, se conseguissem criar o que eles chamavam de “pedra filosofal”. Há muito tempo, transformar um elemento químico em outro está nos sonhos e nos projetos de algumas pessoas. Hoje, sabemos que isso é possível. Não como os alquimistas queriam, mas, sim, sabemos transformar um elemento químico em outro. Afinal, como isso é feito?

No núcleo de um átomo há dois tipos de partículas: prótons e nêutrons. Os prótons têm carga positiva. Então, eletricamente, eles se repelem. Isso é compensado pela presença de nêutrons e pelas forças nucleares de atração. Porém, quando o número de prótons é muito grande, acima de 83, ou quando o número de nêutrons é muito alto ou muito baixo para o número de prótons, o núcleo é instável. Como forma de se estabilizar, esses núcleos emitem, naturalmente, partículas ditas radioativas, como a alfa e a beta, além de radiação de alta energia.

Cada partícula alfa tem dois prótons e dois nêutrons. Alguns núcleos de polônio, que é um elemento de 84 prótons em cada núcleo, podem liberar uma partícula alfa. Nesse processo, eles perdem esses nêutrons e prótons, convertendo-se em outro elemento, o chumbo, que tem, portanto, apenas 82 prótons. Quando isso ocorre, temos uma transmutação nuclear, que é quando um elemento se converte em outro, diferente.

Algo semelhante ocorre quando um núcleo emite uma partícula beta: um nêutron, que é eletricamente neutro, se converte em um próton, que é positivo. Para manter o equilíbrio de cargas no universo, também é gerada uma partícula negativa, que é a partícula beta. Isso acontece no decaimento do carbono-14, que é um núcleo atômico de 6 prótons e 8 nêutrons. Ele libera uma partícula beta e se converte no nitrogênio-14, que tem 7 prótons e 7 nêutrons.

A radiação derivada desses processos pode ser considerada como uma onda de alta energia. Quando falamos em radioatividade, pensamos primeiramente em tragédias, como o desastre da usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, ou o caso do césio-137 indevidamente liberado em Goiânia. Porém, a radiação, quando controlada, pode ser usada para diagnósticos e tratamentos de doenças, seja na obtenção de imagens ou no combate a tumores.

Vários cientistas se destacaram no estudo da radioatividade. Uma delas foi a franco-polonesa Marie Curie (1867-1934), que isolou dois elementos até então desconhecidos, o rádio e o polônio, e é vencedora do Prêmio Nobel de Física de 1903. Outro foi Ernest Rutherford (1871-1937), que identificou a composição e nomeou as partículas alfa e beta, e também é vencedor de um Nobel, o de Química de 1908.

Por enquanto, falamos apenas das transmutações naturais. Mas a transformação de um elemento em outro também pode ser feita artificialmente, ao bombardear um núcleo atômico com partículas. O primeiro cientista a realizar essa façanha também foi Rutherford, em 1919: ao bombardear o nitrogênio com partículas alfa emitidas naturalmente pelo polônio, ele conseguiu obter oxigênio. Hoje, já se sabe que um elemento químico pode emitir outras partículas, como nêutrons e pósitrons, como resultado de reações nucleares (transmutações) artificiais.

O domínio dessas reações só cresceu desde então. Lamentavelmente, muito por conta da corrida nuclear, especialmente nas décadas de 1930 e 1940. As bombas atômicas, ou bombas nucleares, funcionam por meio da fissão nuclear, que é a quebra de núcleos grandes em outros menores. O processo é relativamente simples: um núcleo grande e instável, como o do urânio, é bombardeado por um nêutron. Esse núcleo, então, se quebra, liberando energia e originando elementos mais leves. Essa fissão também libera nêutrons velozes, que irão quebrar outros núcleos de urânio, dando seguimento a uma reação em cadeia, que têm como resultado uma explosão extremamente poderosa. Para se ter uma ideia, a bomba nuclear usada em Hiroshima na Segunda Guerra Mundial teve uma liberação de energia de cerca de 15 quilotons, ou seja, equivalente à energia de 15 mil toneladas de dinamite.

Mas, como tudo na ciência, também há o uso positivo. A energia proveniente da fissão nuclear pode ser usada de forma controlada. Usinas nucleares são, essencialmente, usinas termelétricas nas quais a água não é aquecida pela queima de carvão, gás ou diesel, mas pela fissão controlada de núcleos de urânio. Tais usinas fornecem eletricidade de forma relativamente barata a países que não dispõem de muitos recursos naturais. Um exemplo disso é a França: cerca de três quartos de sua energia vêm de seus 58 reatores nucleares.

Por meio de transmutações artificiais, já é possível criar elementos químicos artificiais, isto é, que não são encontrados na natureza. Para isso, usam-se aceleradores de partículas. Nesses processos, não se busca a fissão, mas a fusão nuclear, obtendo-se elementos pesados. Os elementos transurânicos da tabela periódica, ou seja, aqueles que possuem mais que os 92 prótons do urânio em seus núcleos, são obtidos dessa forma.

Infelizmente, ainda não conseguimos transformar metais em ouro a baixo custo, mas conseguimos desenvolver tecnologias muito interessantes a envolver transmutação nuclear. Graças a ela, a medicina oferece novas opções de diagnóstico e de tratamento de várias doenças e é possível levar energia elétrica de forma segura e barata. A realidade atual pode não ser de ouro, como os alquimistas esperavam, mas não fica a dever nada a esse sonho ancestral.


Cultura Secular

Revista de divulgação científica e cultural do grupo de pesquisa “Investigações Transdisciplinares em Educação para a Ciência, Saúde e Ambiente”.

Comissão editorial
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ISSN 2446-4759