sobrevivência indígena no brasil república
Grupos tradicionais são as maiores vítimas de ações e omissões estatais

 ano 18  -  n.35  -   jan./jun. 2020 

por Larissa Perdigão

Reprodução
Página do Relatório Figueiredo, 1967: genocídio reconhecido em documento oficial

Ao longo dos 130 anos da história republicana brasileira, os indígenas foram considerados seres humanos incapazes, ou dependentes de políticas de proteção do governo, ou mesmo estorvo merecedor de limpeza étnica. As políticas variaram ao longo dessa trajetória, com avanços e recuos, mas, na maioria das vezes, as ações foram voltadas à aculturação dos povos indígenas na sociedade. Neste texto, vamos tratar de alguns aspectos dessa árdua e sangrenta relação dos povos originários com o ente administrativo do território brasileiro.

Os primeiros vinte anos estiveram entre os mais cruentos. A expansão do café pelo interior paulista, a ocupação de outros rincões e o crescimento econômico e populacional branco provocou massacres de indígenas. Sob intensa pressão internacional para a cessação dessa carnificina, o governo criou, em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Sob o marechal Rondon, o SPI assumiu, por um longo período, uma abordagem protetora. Porém, sob essa capa, encontrava-se a intenção de anular a cultura indígena, convertendo os povos não mais em cristãos, como faziam os missionários, mas em trabalhadores nacionalistas, inseridos no sistema capitalista, dependentes da proteção branca. “Atrair e pacificar”, essa era a meta de Rondon.

Na década de 1940, as intenções do SPI já haviam se deteriorado ainda mais. Seus agentes se aproximavam dos indígenas para sua exploração econômica. Esse desastroso movimento se fortaleceu na segunda metade da década de 1950. A política do SPI incorporou a mentalidade de converter postos indígenas em empreendimentos a serviço do homem branco. Os grupos autóctones foram forçados a vender os produtos de seu trabalho por preços irrisórios. Terras e recursos indígenas foram arrendados a pessoas de fora para mineração, pecuária e extração de madeira. Buscava-se, não mais convencer ou induzir, mas forçar, com violência, o indígena a se inserir na estrutura de classes, especialmente na base da pirâmide.

A implantação da ditadura em 1964 só fez piorar a situação indígena. A certeza de impunidade era tanta que todos os chefes de postos do SPI (eram cerca de 130), à exceção de um, haviam cometido crimes no exercício da função, de acordo com o Relatório Figueiredo, documento legal cuja produção foi liderada pelo promotor público Jader de Figueiredo Correia e finalizada em 1967. Ali, reportam-se violentos crimes cometidos por chefes de postos do SPI, como genocídios, torturas, ataques biológicos e químicos, escravidão, abusos sexuais, além de outros delitos gravíssimos, como corrupção, invasão de terras, confisco, falsificação de documentos de propriedade, entre muitos outros.

A resposta governamental foi cosmética: extinguiu o SPI e criou a Fundação Nacional do Índio (Funai) em seu lugar, ainda em 1967. Dois modelos opostos coexistiram nos primeiros anos da nova fundação. O primeiro, desenvolvido pelos irmãos Villas-Bôas, buscou proteger grupos indígenas em reservas ou parques. O segundo quis manter a exploração da renda indígena em aldeias vistas como unidades econômicas produtivas. A Constituição imposta em 1967 seguiu a mesma linha: manteve inscrito o princípio dos direitos dos povos à ocupação de territórios tradicionais, mas mostrava querer impor aos grupos originários a “comunhão nacional”, enxergando-os como grupos tutelados, especialmente com relação à renda. Ou seja, o documento legal máximo da nação deixava claro o objetivo de transformar os indígenas em sujeitos que deveriam contribuir para o desenvolvimento nacional.

Lamentavelmente, o “milagre econômico brasileiro” e a meta de ocupar a Amazônia consolidaram o segundo modelo. A expansão econômica permitiu a imposição da ideologia nacionalista da ditadura. Esta, por sua vez, não dava espaço à autonomia de tribos etnicamente distintas, o que contribuiu para o sufocamento cultural dos indígenas. Além disso, obras de rodovias na região Norte, como as da Transamazônica, da Manaus-Porto Velho e da Manaus-Boa Vista, significaram um retorno às atrocidades dos tempos de SPI, especialmente para grupos indígenas nunca contatados anteriormente. As Comissões Nacional e Estaduais da Verdade contribuíram para resgatar a triste memória destes casos. Lamentavelmente, a palavra a definir o que o Estado brasileiro fez contra diversos grupos indígenas nesse período ditatorial é genocídio.

Na década de 1980, a expansão das fronteiras agrícolas para o norte, a descoberta de minérios de valor no subsolo de territórios indígenas e a recessão da chamada “década perdida” só prejudicaram ainda mais tais povos. A situação começou a mudar em 1988, com a nova Constituição. A mobilização de alguns grupos indígenas e ONGs tiveram êxito em garantir na Carta os direitos dos povos autóctones à sua diversidade cultural, uma relativa independência e o abandono do princípio integracionista.

Concretamente, porém, de 1988 até 2018, a política indígena vinha sendo ambígua, com avanços e recuos. Demarcações de terras indígenas se aceleraram; muitas dessas terras ganharam proteção ambiental da lei; os indígenas conquistaram uma maior valorização de sua cultura, vagas reservadas em universidades públicas, direito à escolarização bilíngue. Os tímidos avanços, no entanto, foram ofuscados pelos recuos, como questionamentos judiciais retroativos de demarcações de terras; incursões de não indígenas para exploração da fauna, da flora e de minérios e pressão pela legalização desse tipo de atividade; contaminação das terras e do ar por metais pesados e pesticidas; falta de verbas e de atenção governamentais para garantir saúde, educação e proteção aos seus territórios, às suas culturas e mesmo às suas vidas.

A situação, que já era grave, vem piorando desde 2019. Assistimos a um rápido retorno a tempos sombrios, de exigência de assimilação cultural como forma de justificar o avanço sobre territórios e riquezas indígenas, de explosão de assassinatos de líderes indígenas, de busca por revogar leis de proteção das terras indígenas e autorizar a exploração das terras, especialmente dos minérios, da madeira e do solo para a pecuária e a monocultura agrícola.

Grupos vulneráveis já sofrem na relação com frações mais ricas e poderosas da sociedade. A situação fica mais grave quando envolve violações de direitos humanos. Mas, como se vê, há um nível ainda mais abjeto: é quando a agressão a esses direitos vira política de Estado, como ocorreu inequivocamente e de forma muito intensa com os povos indígenas brasileiros ao longo de nosso período republicano, inclusive com episódios de genocídio. Não há outro grupo em nossa sociedade que tenha sofrido ofensiva tão severa. Não podemos ignorar, esquecer, calar.


Cultura Secular

Revista de divulgação científica e cultural do grupo de pesquisa “Investigações Transdisciplinares em Educação para a Ciência, Saúde e Ambiente”.

Comissão editorial
Larissa Perdigão
Michelle Zampieri Ipolito
Glauco Lini Perpétuo

Jornalista responsável
Larissa Perdigão (MTb 37654/SP)

Imprenta
Brasília, DF, Brasil

ISSN 2446-4759