o provincianismo nazista pela arte
Alemanha de Hitler usou arte estereotipada como apoio ao antissemitismo

 ano 21  -  n.42  -   jul./dez. 2023 

por Larissa Perdigão

N-Lange.de/Wikimedia Commons/CC 3.0
Cabeça de águia nazista como arte do aeroporto desativado de Tempelhof, Berlim, em 2011

O documentário Arquitetura da Destruição (Undergångens arkitektur, Suécia, 1989, com direção de Peter Cohen) faz emergir as ideias totalitárias da Alemanha nazista, contrapondo-as aos fundamentos pluralistas do Estado Democrático de Direito. Visitar algumas passagens do filme pode nos ajudar a compreender aspectos desse período da História.

Uma das ideias visitadas pelo filme, que foi se tornando progressivamente mais forte no regime alemão, é a de pureza da raça, associada a uma beleza artística situada, invariavelmente, na Antiguidade. O filme aponta a conexão entre os conceitos e os gostos artísticos do Führer e as ideias que fez implementar, especialmente quando começou a perder a guerra, ou seja, quando os reveses se tornaram mais frequentes que os sucessos.

A ideia de que as pessoas que não seguem o padrão imposto pela sociedade devem ser eliminadas por uma eutanásia involuntária, ou mesmo por uma morte dolorosa, é frontalmente contrária aos direitos humanos. Note-se, porém, que uma Declaração Universal de Direitos Humanos só viria a ser adotada em 1948. A ideia de um Estado Democrático de Direito é bastante anterior a ela, podendo ser percebida mesmo no século XVIII, nos Estados Unidos ou na França revolucionária.

Explica-se: ainda que seja democrática em uma concepção original, grega, a estadunidense Bill of Rights não pode ser tomada como efetivamente universal à luz da persistente escravatura e da posterior doutrina “separate but equal”, usada para apoiar a segregação racial. Tampouco a Déclaration des droits de l'homme et du citoyen (Declaração dos direitos do homem e do cidadão), de 1789, era universal: essa declaração valia apenas para cidadãos ativos, ou seja, apenas homens, maiores de idade, pagadores de impostos.

O que se quer dizer, portanto, é que não se via, até a década de 1940, a garantia e a valorização universal dos direitos humanos como necessárias à existência e à permanência de um Estado Democrático de Direito, em algo que renovou a concepção de democracia. De fato, o Estado Democrático de Direito até a década de 1940 tinha fundamentos “pluralistas”, mas não fundamentos “universais”, o que se alinha à trajetória observada historicamente. A ideia do Artigo 1 da Declaração Universal de Direitos Humanos, de que “[t]odos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, sem as restrições presentes no documento originário francês, aprofunda o pluralismo ao nível do universalismo.

O antissemitismo é outro conceito muito intenso tratado pelo filme. Segundo o documentarista, Hitler teria tomado emprestado de Richard Wagner, compositor e diretor teatral do século XIX, o antissemitismo. Quando se fala em Estado de Direito e antissemitismo, vale relembrar o “Caso Dreyfus”, que movimentou a França na virada do século XIX para o XX. Isto porque há muitos elementos do caso que se associam com fatos contemporâneos.

Alfred Dreyfus, militar francês de ascendência judaica, foi condenado à prisão perpétua em 1894 por suposta traição, a despeito das atenuantes e das provas frágeis. As irregularidades no processo foram ignoradas pela imprensa e pela opinião pública, que preferiram confiar no punitivismo do sistema. Nem todos, porém, deram-se por satisfeitos: dois anos depois, uma investigação séria, mas não oficial, provou que a traição fora cometida por outro militar. Ainda assim, os sistemas judiciário e militar ignoraram as provas e inocentaram o verdadeiro culpado. Mais do que isto: foram sendo construídas provas falsas de que o culpado seria, mesmo, Dreyfus.

Esta situação despertou em diversas pessoas um sentimento profundo de injustiça, que levou o escritor Émile Zola a escrever carta aberta ao então presidente francês, acusando nominalmente aqueles que perseguiam Dreyfus para proteger o verdadeiro culpado, rol que incluía altos oficiais do exército francês. A contrarreação veio dos antissemitas e dos conservadores, que preferiam ignorar fatos para posicionar-se contra Dreyfus. Apenas quando a opinião pública tomou conhecimento de que as provas que foram surgindo depois da condenação de Dreyfus eram todas falsas, em fins de 1898, foi inevitável submeter o militar a novo julgamento. Apesar de ser absolutamente evidente a inocência de Dreyfus, o militar ainda fora condenado a dez anos de prisão. Porém, desta vez, a reação da opinião pública forçou o presidente francês a conceder perdão a Dreyfus, mas não sem perdoar, também, todos aqueles que haviam atuado dolosamente para colocar na prisão perpétua um homem inocente.

Um elemento do Caso Dreyfus com similaridades com vários casos recentes é a escolha casual de vítimas pelo sistema. Enquanto o judeu Dreyfus foi condenado sumária e pesadamente com base em provas fracas e, posteriormente, comprovadamente falsas, o verdadeiro culpado e os falsificadores do exército francês saíram absolutamente incólumes do episódio. Cada nova rodada de revelações favoráveis a Dreyfus não era somente acompanhada da forja de novos documentos falsos pelo Exército, mas, de forma igualmente abjeta, de pressões sociais antissemitas, visando mantê-lo preso.

O caso Dreyfus teve outras implicações históricas. Como democracia, a França assistiu a uma vitória avassaladora dos dreyfusards, ou seja, dos apoiadores da justa liberdade para Dreyfus, na eleição de 1902. Isso levou a França à definitiva separação entre Igreja e Estado, em uma guinada progressista e à esquerda. Porém, a divisão da sociedade francesa haveria de fortalecer, também, os antissemitas: em 1899, Charles Maurras fundou a Ação Francesa, movimento extremista de ideologia nacionalista ainda ativo.

A ideologia nacionalista é, sem dúvida, uma chaga na sociedade atual. E o filme, por mais que use a arte como fio condutor principal, não se furta a explorar esse aspecto em Hitler. Mais do que nacionalista, Hitler é retratado como um provinciano. Um sujeito que, controlando diversas metrópoles da Europa, como Paris, preferia visitar regularmente a Linz de sua infância. Daí adviria a sua incapacidade de compreender outras culturas, outras formas de pensar. Daí a sua incapacidade de colocar-se no lugar do outro, um outro minimamente diferente de si.

Se, como mostra o filme, daí derivou uma ideia estúpida, mas inofensiva, de que a luta de classes poderia ser interrompida apenas pela imposição da higiene dos corpos e dos ambientes, também derivou daí coisas bem piores. O provincianismo de Hitler é o provincianismo de tantos outros ditos nacionalistas. E se já é nociva a sua intolerância ao diferente, muito pior fica quando o provinciano alça cargos de poder. Qualquer semelhança com a contemporaneidade não parece ser mera coincidência.

Desse provincianismo, que o filme também liga ao autor fantástico Karl May, tido como muito lido por Hitler, também deriva o maniqueísmo que segue nos assombrando. Maniqueísmo que pode ser definido como uma “redução política dual entre amigos e inimigos”. E só há uma forma conhecida de reduzir o provincianismo: naturalizar o diferente. E é cada vez mais difícil fazê-lo, com tantos locais e pessoas a reproduzir e a permitir e esperar um único sotaque, com mídias sociais a formar bolhas radicais criadas por algoritmos viciantes, com escolas socialmente segregadas e com as restrições às migrações que permitiriam contatos mais intensos com culturas diversas.

Tudo isto exposto, podemos voltar ao início do filme, com sua referência ao provincianismo de uma pequena aldeia alemã e de sua gente, gente que não tinha a menor ideia do que era o nacional-socialismo, tampouco tinha qualquer conhecimento sobre o mundo fora da aldeia. Em um lugar como esse, que se reproduz hoje em qualquer metrópole graças às bolhas sociais, ideias apocalípticas podem ser subvertidas para parecerem inofensivas ou desejáveis. Naturalizar o diferente, especialmente por meio de uma sociedade dialógica, plural, democrática, inclusiva, parece ser a nossa única saída para preservar o Estado Democrático de Direito das ameaças totalitárias e garantir o universalismo.


Cultura Secular

Revista de divulgação científica e cultural do grupo de pesquisa “Investigações Transdisciplinares em Educação para a Ciência, Saúde e Ambiente”.

Comissão editorial
Larissa Perdigão
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Jornalista responsável
Larissa Perdigão (Registro 37654/SP)

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Brasília, DF, Brasil

ISSN 2446-4759