viena como ode à diplomacia
A paz assinada nos gabinetes europeus vale mais que a atração prevalente pela guerra
ano 16 - n.31 - jan./jun. 2018
por Larissa Perdigão
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Palácio de Schönbrunn, em Viena, na atual República da Áustria |
Dois eventos celebraram efemérides em 2014: o início da Primeira Guerra Mundial atingia o seu primeiro centenário; o Congresso de Viena ia ao bicentenário. No entanto, como 2014 pôde mostrar, é expressivo o contraste entre as memórias de cada um desses dois momentos. A lembrança da guerra mundial é impressionante: além das celebrações ocorridas em todo o mundo em referência ao seu centenário, o tema dessa guerra foi e ainda é central para milhares de livros escritos desde 1918. Enquanto isso, o bicentenário da cúpula vienense mal chamou a atenção do público além da academia. Da mesma forma, o evento também não possui bibliografia vasta como aquela relacionada à guerra. Possivelmente, essa comparação diga algo sobre a dificuldade de afirmar o poder da paz em meio à abordagem prevalecente sobre a guerra – que é o que buscamos fazer neste ensaio.
Muitas das inúmeras guerras continentais europeias da história moderna e contemporânea terminaram em confusão, mesmo entre os vencedores. No entanto, de alguma forma, a ordem precisa emergir novamente. E é isso que, repetidamente, vem ocorrendo na Europa, com o auxílio das conferências diplomáticas. Assim, Viena não é um caso isolado: tem a companhia de Utrecht (1713), Versalhes (1919) e Ialta (1945), por exemplo. E é isso o que parece ter moldado o destino da Europa e, muitas vezes, do resto do mundo. Para o bem ou para o mal, essas cúpulas foram os momentos decisivos para isso, ainda que estejam muito longe de gerar a mesma comoção ou ter o mesmo poder de atrair a atenção popular que a guerra.
A Primeira Guerra Mundial está mais próxima do nosso tempo e, por isso, é naturalmente mais vívida na memória coletiva do que o Congresso de Viena. Temos uma grande quantidade de fotografias e até filmes das frentes de batalha, mas apenas alguns textos e memórias para evocar o processo de paz de cem anos antes. Certamente isso contribui para o desequilíbrio nas lembranças da paz e da guerra: soldados usando metralhadoras uns contra os outros parece mais impactante que uma imagem de diplomatas sentados tranquilamente em torno de uma mesa na esteira da derrota de Napoleão. Mas, para além disso, será que tendemos a fazer uma leitura da história de situações violentas de uma forma que não fazemos para negociações tão plácidas?
É ideia consolidada na academia aquela que aponta a Primeira Guerra Mundial como especialmente notável por ter marcado o fim de uma era de impérios e o nascimento de novos estados-nação na Europa. No entanto, em agosto de 1914, possivelmente ninguém tinha a menor ideia de que a guerra seria longa. Muito menos, poderia imaginar que traria consigo uma alteração tão significativa da balança de poder mundial. Afinal, não foi antes de três longos anos de uma guerra desgastante que os impérios começaram a desmoronar (sendo o russo o primeiro, em plena guerra).
Da mesma forma, supomos que, na década de 1800, era corrente entre as pessoas a ideia de que Napoleão estava inevitavelmente condenado à derrota. Falso. As coisas não poderiam parecer mais diferentes disso. Depois de Napoleão ter devastado a Áustria e a Prússia em questão de meses, por volta de 1805-6, a Europa entrou em estado de choque. Para alguns, grande euforia; para outros, o apocalipse. Mas, para todos, a sensação de que a ordem natural das coisas havia sido destruída. Possivelmente, Napoleão teria desfrutado dessa hegemonia na Europa por muitos anos mais, se não tivesse concebido o plano (que só se mostrou catastrófico depois de executado) de invadir a Rússia.
Ou seja, como sabemos quem venceu a guerra e quais foram suas consequências, muitas vezes, de forma inconsciente, acrescentamos uma dimensão de destino (“maktub”) ao conflito, como se o resultado tivesse sido escrito de antemão. Assim, tendemos a esquecer o sentimento angustiante de incerteza que os contemporâneos sentiram diante de seus próprios presente e futuro. Na verdade, os eventos de uma guerra se sucedem de forma tão caótica que o evento consecutivo é essencialmente imprevisível. Isso nos mostra o quanto nossos entendimentos sobre as guerras do passado podem ser enviesados.
Concentrarmo-nos na mecânica da construção da paz pode nos ajudar a voltar a uma linha de raciocínio isenta de vieses. A ordem, afinal, ressurgiu nas mesas de negociação de Viena, não nos campos de batalha. Após a queda do império de Napoleão, em 1814, as grandes potências estabeleceram a tarefa de redefinir o sistema político, dando origem ao que seria chamado de Concerto Europeu. O futuro da Europa foi redefinido por um conjunto totalmente diferente de pessoas, em princípios completamente diferentes, do que aqueles que prevaleceram sob o regime imperial de Napoleão.
Nesse contexto, a disposição do czar russo Alexandre I de fazer com que as potências europeias criassem um novo sistema de paz na Europa não poderia ser apontada como forma de autodefesa, de covardia ou de vingança contra a França. Afinal, além de defender de forma inequivocamente bem-sucedida a sua Rússia, ainda conseguiu libertar a Prússia e a Áustria quase tão rapidamente quanto Napoleão as havia conquistado, bem como entrou em Paris sem a intenção de tomar a França para si. E Alexandre I, afinal, conseguiu o que queria. Ao final do Congresso, a Europa tinha um novo mecanismo de segurança coletiva.
Àquele tempo, o acordo era vanguardista. O sistema multilateral superava a bilateralidade mais comum até então. Além disso, chefes de Estado e diplomatas das potências deveriam reunir-se periodicamente, tal como fizeram em Viena. A ideia era a de que buscariam acordos entre si para então impor sua vontade aos demais Estados. Claro que, assim, buscavam chamar de paz o que, em realidade, era uma forma de moldar o mundo como desejavam. Mas, ainda assim, parecia melhor que a guerra.
Essa política explícita para manter a paz internacional a todo custo fazia sentido. A experiência dos vinte anos de uma guerra sangrenta no continente conduzia os interesses das potências europeias. Fato é que essa opção pela diplomacia funcionou por quase quarenta anos, até a eclosão da Guerra da Crimeia, em 1853. O Concerto Europeu, ainda que progressivamente fragilizado, durou até 1914. Cem anos de manutenção de um acordo como esse indica o poder da estabilidade (e da paz) ante a anarquia (e a guerra).
A ideia de que as maiores potências deveriam se engajar em ocupações mais lucrativas do que ameaçar umas às outras com grandes exércitos ainda era bastante nova no início do século XIX. Talvez tenha sido inaugurada pelo abade de Saint-Pierre. Mas essa ideia mal tinha completado cem anos em Viena. Tanto que os principais intelectuais defensores da paz, como Rousseau e Kant, são quase contemporâneos da Revolução Francesa. Entre seus principais argumentos estava que a indústria e o comércio, bem como a estabilidade política interna, se beneficiariam enormemente da paz, enquanto, inversamente, que grandes exércitos eram apenas um fardo para o tesouro, aumentando a dívida e produzindo um risco de falência do Estado.
Os trabalhos desses intelectuais têm sido encarados como origens teóricas da tese da paz democrática, ou seja, da ideia de que democracias não fazem guerras entre si. Mas, na prática e na História, o sistema criado em Viena é a primeira aplicação real dessa tese, tendo com ela muitos elementos em comum. Ainda que tivessem ideais distintos – o czar tinha em mente os ideais de Saint-Pierre, enquanto Metternich e os britânicos pareciam mais céticos – havia uma percepção comum de que um longo período de paz era o que a Europa precisava acima de tudo, depois das duas décadas de guerra. Assim, substituíram um equilíbrio de poder muitas vezes competitivo por um equilíbrio mais ativo, por meio do diálogo e, às vezes, da cooperação.
Essa reflexão que fizemos sobre as consequências reais das guerras e dos tratados de paz questiona o posicionamento dos marcos históricos. Deveriam ser os marcos os acordos de paz ou os inícios de guerra? Ora, Viena (1814-15), Versalhes (1919) e Yalta (1945), estes, sim, são marcos de mudança real e significativa. Eles moldaram a paz europeia e a balança de poder dos anos que os sucederam. A Revolução Francesa, as impressionantes campanhas de Napoleão, sua derrota na Rússia e sua queda final foram eventos espetaculares, tanto quanto aqueles da Primeira Guerra Mundial citados no início deste ensaio. Geraram de estudos acadêmicos a livros e filmes. No entanto, no que diz respeito à Europa, eles foram apenas interlúdios em uma longa história de busca por pacificação.
Possivelmente, a implicação mais sensível desse entendimento de que a paz gera mais resultado do que a guerra é a de que milhões de pessoas perderam a vida durante as guerras napoleônicas quase à toa. Acreditavam que podiam fazer diferença na dinâmica do mundo, quando, em realidade, os efeitos políticos mais expressivos e duradouros do período 1789-1815 foram os obtidos nas negociações de Viena. É de se lamentar profundamente que tantas gerações de jovens tenham se sacrificado por guerras que só terminaram por acordos diplomáticos. Mas é de se esperar que tantos sacrifícios tenham servido de lição definitiva aos líderes mundiais de que podemos pular o sofrido e custoso passo da guerra e chegarmos diretamente à inevitável mesa de negociações.
Cultura Secular
Revista de divulgação científica e cultural do grupo de pesquisa “Investigações Transdisciplinares em Educação para a Ciência, Saúde e Ambiente”.
Comissão editorial
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Glauco Lini Perpétuo
Jornalista responsável
Larissa Perdigão (MTb 37654/SP)
Imprenta
Brasília, DF, Brasil
ISSN 2446-4759
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